No dia 2 de
junho de 1886, um grupo de cavalheiros se reuniu em um escritório não
longe do Viaduto Holborn em Londres. Os homens em questão tinham duas
coisas em comum: um imponente bigode primorosamente aparado e a
certeza de que a criação de uma instância superior que protegesse as
regras do futebol era uma necessidade.
Ao longo da
reunião, os representantes das quatro federações britânicas —
Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte —decidiram
fundar a International Football Association Board (IFAB) para
supervisionar o esporte. Aqueles distintos senhores provavelmente não
imaginaram que, 125 anos mais tarde, a Board continuaria se reunindo
todos os anos para discutir as Regras do Jogo seguindo um protocolo
que permanece incrivelmente semelhante ao que eles estabeleceram em
1886.
Os membros da
entidade encontrarão-se no Resort Celtic Manor em Newport, no País de
Gales, no último mês dede março. A 125ª Assembléia Geral Anual da IFAB
provavelmente não teve tantos bigodes, mas o objetivo foi o
mesmo: zelar pelas regras do futebol para que ele continue sendo o
esporte mais popular do planeta. A Board sempre foi vista como uma
entidade fundamentalmente conservadora. Toda e qualquer mudança
importante é discutida em detalhe e, não raro, passa por longos testes
antes que se decida pela sua adoção.
O
vice-presidente da FIFA e da UEFA Geoff Thompson, que participou de
nove assembléias da Board na época em que presidiu a Federação Inglesa
de Futebol, confirmou esse conservadorismo em entrevista à FIFA
World. "Quando se pensa em emendas às regras, é preferível
ser conservador", explica ele. "Costumamos dizer que a International
Board é a guardiã das Regras do Jogo e, eventualmente, ela proporciona
a estabilidade necessária para impedir que determinadas idéias
extravagantes invadam as nossas regras, o que prejudicaria o futebol."
Os
primeiros passos
Durante a assembléia de 1886, o presidente da federação
inglesa, Francis Marindin, foi o primeiro a se deparar com uma certa
resistência ao novo ao tentar proibir o uso de travas nas chuteiras. A
ata da reunião revela que Marindin propôs "que nenhum jogador use
objetos proeminentes de qualquer tipo sob a sola ou o calcanhar das
chuteiras, com exceção das bandas de couro previamente aprovadas". O
País de Gales apoiou a idéia, mas Escócia e Irlanda do Norte a
rejeitaram e o dirigente inglês acabou retirando a proposta.
Muitas vezes, o
órgão britânico permaneceu nos bastidores do esporte. "Não se trata de
uma instituição misteriosa, mas ela possui uma espécie de aura
impenetrável", lê-se em um relatório da FIFA, publicado em 2007, sobre
a estrutura e as funções da Board. Contudo, quando é preciso debater
um tópico importante das regras, ela se transforma no centro das
atenções.
A mudança mais
significativa dos últimos anos foi adotada pela Board em 1992, quando
se proibiu o goleiro de usar as mãos para tocar bolas recuadas
intencionalmente pelos companheiros. A alteração foi sugerida
inicialmente pelo francês Michel Platini, atual presidente da UEFA e
vice-presidente da FIFA. A regra mudou radicalmente o futebol, e pouca
gente duvidará dos seus efeitos benéficos — exceção feita aos
guarda-metas, talvez.
A
chegada da FIFA
A FIFA se uniu à Board em 1913, com direito a dois votos, a
exemplo de cada uma das federações britânicas. Mais tarde, em 1958, o
crescimento do futebol internacional levou a um consenso que
fortaleceria a influência da FIFA: a entidade passou a contar com
quatro votos, contra apenas um de cada federação. Assim, toda proposta
precisa de seis votos para ser adotada. O sistema permanece em vigor
até hoje.
Quando se
conversa com os membros da Board, antigos ou atuais, todos evocam o
privilégio de servir a uma instituição igualmente ilustre e histórica.
É o que diz o ex-presidente da Federação Irlandesa de Futebol, Jim
Boyce, que sucederá Thompson na vice-presidência da FIFA neste mês de
maio. "Participei de 14 assembléias da IFAB e para mim foi um
privilégio estar presente a cada uma delas, porque rapidamente se
percebe a importância dessa instância para o esporte."
As quatro
federações britânicas geralmente se revezam na organização das
assembléias e, a cada cinco anos, a reunião é organizada pela FIFA,
mas não necessariamente na Suíça. Em ano de Copa do Mundo, o evento
costuma acontecer no país-sede do torneio. Em 1996, porém, a Board se
reuniu no Rio de Janeiro para homenagear o então presidente da FIFA
João Havelange, que preparava a sua aposentaria. "Foi um acontecimento
inesquecível", recorda Boyce. "Assim como o de 2004, na Inglaterra, em
que todos os membros da International Board se encontraram com a
rainha."
Analisando os
125 anos de existência da Board, percebe-se que as regras do futebol
mudaram muito pouco. Uma das modificações mais importantes foi adotada
em 1925, quando a regra do impedimento passou a dar condições de jogo
ao atacante que tivesse diante de si apenas dois jogadores, em vez de
três. Embora a regra tenha sido alterada novamente em 1990 —
decidiu-se que o atacante deveria estar na mesma linha do último
defensor —, o seu princípio permanece o mesmo.
Recentemente, a
regra do impedimento foi modificada outra vez, determinando-se que o
atleta precisa participar ativamente da jogada para estar impedido.
"Este ponto continua gerando controvérsias até hoje, mas a IFAB
reflete bastante sobre a questão", explica Boyce.
O
cuidado com o detalhe
Contudo, a maior parte do trabalho da instituição envolve
assuntos menos polêmicos. Os logotipos nas bandeirinhas de escanteio,
a cor das bermudas térmicas autorizadas e a supressão da publicidade
sobre o gramado são questões analisadas pela Board, que se esforça
para impedir a comercialização excessiva do esporte.
Todas as
federações afiliadas à FIFA têm o direito de propor alterações e, ao
longo dos anos, diversas idéias insólitas foram testadas em campo
antes de caírem no esquecimento. Um exemplo é a "linha das 35 jardas",
utilizada na liga americana no final da década de 1970 e atrás da qual
não poderia haver impedimento. O sistema logo foi abandonado.
Na década de
1990, a Board deu sinal verde para que se testasse o uso dos pés em
cobranças de lateral. "Os experimentos também não foram conclusivos",
lembra Boyce. "As equipes arremessavam sistematicamente na direção do
gol, o que prejudicava o jogo. Mas estudamos a questão a sério, pelo
menos."
A 125ª
Assembléia Geral Anual da International Board foi histórica, pois o
debate sobre a tecnologia da linha do gol esteve na pauta. O tema
foi discutido em reuniões técnicas e na sessão de trabalho que
precedeu a assembléia.
Independentemente da decisão final, o diretor da federação galesa,
Jonathan Ford, ficou contente de receber os membros da Board para o
grande evento. " Trata-se do fórum em que se discute o futebol e
participar dele é um privilégio imenso", disse ele na época em
entrevista à FIFA World. "A força da International Board é
que os membros têm consciência da pesada responsabilidade que lhes
cabe, para o bem do esporte mais popular do mundo."
Os cavalheiros
bigodudos do século XIX talvez não tivessem plena consciência da
importância da fundação da primeira organização internacional do
futebol. Revivendo esses 125 anos de história, porém, parece
apropriado dizer que, quanto mais as coisas mudam, mais a Board
continua a mesma.
Datas-chave na evolução das Regras do Jogo
1863: As
primeiras Regras do Jogo são redigidas em Londres
1886: A
International Football Association Board é fundada pelas federações
britânicas
1891: Os
árbitros ganham o direito de expulsarem jogadores e marcarem faltas e
pênaltis
1902: Criação
da grande e da pequena área
1904: Fundação
da FIFA
1912: O goleiro
é proibido de tocar a bola com as mãos fora da grande área
1913: A FIFA
passa a integrar a International Football Association Board
1920: Extinção
do impedimento em cobranças de lateral
1925: A regra
do impedimento é alterada para dar condições de jogo ao atacante que
tivesse diante de si apenas dois jogadores, em vez de três
1938: Revisão
das Regras do Jogo. As 17 regras são reescritas e atualizadas por
Stanley Rous, que assumiria a presidência da FIFA em 1961
1958:
Introdução do novo sistema de votação, vigente até hoje, em que cada
federação britânica conta com um voto, contra quatro da FIFA, e toda
proposta precisa de seis votos para ser aceita
1970: A FIFA
autoriza duas substituições em jogos de Copa do Mundo
1990: A regra
do impedimento é alterada para dar condições de jogo ao atacante que
estiver na mesma linha do último defensor
1992: O goleiro
é proibido de usar as mãos para tocar bolas recuadas intencionalmente
pelos companheiros. A regra do gol de ouro é criada para definir o
vencedor em partidas com prorrogação
1995:
Autorização de três substituições, em vez de duas
1997: Primeira
revisão das Regras do Jogo desde a década de 1930
1998: Os
carrinhos que colocam em perigo a integridade física do adversário se
tornam passíveis de cartão vermelho
2004: Extinção da regra do gol de ouro
2008: A Board
autoriza a UEFA a realizar testes com a presença de dois árbitros
assistentes adicionais, posicionados atrás da linha do gol.